Alfredo Stéfano Di Stéfano Laulhé (1936-2014) foi um dos melhores jogadores que o futebol já viu. Ídolo do Real Madrid e do River Plate, o argentino talvez tenha sido o maior de todos antes do aparecimento de Pelé. Atacante de força, habilidade, instinto, raça e incrível eficácia, marcou mais de 500 gols, ganhou 15 títulos nacionais, cinco continentais e um mundial pelos clubes que defendeu. Pelo Real, é até hoje uma das maiores figuras e gabava-se de ter um retrospecto invejável contra o maior rival e freguês, o Barcelona: 17 vitórias em 30 jogos. Esta freguesia, no entanto, não se aplica ao modesto Madureira, do Rio de Janeiro. Na primeira vez em que a "Flecha Loira" encarou o Tricolor Suburbano, perdeu. E foi ofuscado por um brasileiro de nome Genuíno. Tudo por causa de uma excursão do Madura à Colômbia, nos anos 1950.
Era o ano de 1952. Di Stéfano já era um dos atacantes mais notáveis da América do Sul. Destaque na seleção argentina, tinha deixado seu país três anos antes após uma revolta de jogadores do River, que exigiam melhores condições de trabalho. Foi para a Colômbia, onde fechou com o Millonarios, de Bogotá. Na altura, o futebol colombiano não seguia as regras da FIFA e virou uma espécie de torneio "pirata", onde se pagavam fortunas às grandes estrelas que eram contratadas. Di Stéfano era uma delas e já tinha faturado um título nacional, tornando-se ídolo local. Enquanto isso, no Rio, o Madureira preparava uma excursão pela América do Sul, a terceira do clube em três anos. A equipe passaria por Venezuela, Colômbia, Equador e Bolívia para uma série de jogos amistosos.
Em fevereiro, o Tricolor esteve na Venezuela, onde obteve um retrospecto positivo. Primeiro, um empate em 1 a 1 com o Loyola e uma vitória por 3 a 2 sobre o Universidad de Caracas. Depois, mesmo em território venezuelano, o Madura passou a jogar contra clubes da Colômbia. Perdeu para o Deportes Quindío (3 a 2), venceu o Sporting de Barranquilla (3 a 1) e depois voltou a enfrentar o Quindío, desta vez com vitória (novamente um 3 a 1). Após passar o Carnaval na terra de Bolívar, o grupo atravessou a fronteira para conhecer a Colômbia, onde giraria por Bogotá, Cali e Armenia. Um roteiro diferente, já que na etapa venezuelana tinha se fixado em apenas na capital, Caracas.
Genuíno, a arma secreta madureirense
O Madureira chegou a Bogotá na virada do mês. A expectativa era pelo enfrentamento ao Millonarios, campeão nacional no ano anterior com larga folga. Enquanto isso, no Rio, só se falava na possibilidade da negociação do centroavante Genuíno, goleador do time no Carioca de 1951. Ele chamou atenção de vários clubes, especialmente após uma vitória sobre o Botafogo, na qual marcou os dois gols da vitória por 2 a 1, em Conselheiro Galvão. Ele era de fato um goleador e já vinha provando isso durante a excursão. Isso fez o Flamengo despertar interesse no camisa 9 e chegou-se a especular que ele voltaria ao Rio logo depois do aguardado amistoso. O que ninguém sabia ainda era que Genuíno seria fundamental no duelo. Ele negava-se a ser vendido pelo Madureira, o que complicou a negociação.
A história de Genuíno merece um parêntese. Mineiro, 24 anos, forte e habilidoso, tinha chegado em 1951 do Bela Vista, de Sete Lagoas (MG), onde nasceu. Estreou contra o Fluminense e já foi logo fazendo gol. Porém, só ganhou fama quando surpreendeu o Botafogo, já que o Glorioso perdeu terreno na luta pelo título carioca. Uma investigação levantada por General Severiano descobriu que o atacante estava irregular, já que tinha atuado por uma liga oficial de Sete Lagoas antes do Carioca, o que era ilegal na época. A partida foi anulada, mas os pontos do Madureira não foram perdidos. No fim, o Flu acabou mesmo campeão. Genuíno trabalhava como caminhoneiro e acreditava que não deveria ser negociado enquanto jogador. Afinal, não se via como uma mercadoria. Foi isso que atrapalhou os negócios com o Flamengo.
Alheio a tudo isso, o Millonarios esperava seu, até então, desconhecido adversário. O time colombiano, tido para muitos como o melhor do continente, era estrelado: além de Di Stéfano (dono de 32 gols no campeonato anterior), também tinha o goleiro Julio Cozzi - chamado de "o goleiro do Século" -, o volante Pipo Rossi e o meia Adolfo Pedernera, que também era o técnico. Todos eram argentinos e donos de história respeitável em seu país de origem. Para o grande jogo de recepção aos brasileiros, o time bogotano não teria Pedernera e Báez, que estavam viajando. De resto, os azuis iriam com todos à disposição para cima de um Madura que contava com nomes como Darcy, Bitum e um jovem de apenas 18 anos, chamado Evaristo de Macedo.
Os suburbanos varrem os "melhores da América"
Era um domingo de sol em calor em Bogotá. O Estádio El Campín recebia um bom público para ter de volta o Millonarios, que vinha do Uruguai após excursão em que perdeu para Peñarol e Nacional. O Madureira, que vinha em fase melhor, esperava conseguir um bom resultado diante do público internacional. Mal a bola rolou e já foi possível perceber que o time de Conselheiro Galvão teria um dia feliz. Para marcar Genuíno, definiu-se que o uruguaio Pini teria a missão. Ele era conhecido por ter um jogo violento, mas o centroavante madureirense foi demais para o beque. Logo aos quatro minutos, ele passou pelo adversário e chutou sem chance para Cozzi, fazendo 1 a 0.
Parecia surpreendente, mas o Millonarios nem teve tempo de se reorganizar: Silvinho invadiu a área pela esquerda após uma roubada de bola logo após a saída e marcou o segundo gol. O público, decepcionado, mal conseguia acreditar que o penúltimo colocado do Campeonato Carioca estivesse envolvendo um dos melhores times da América do Sul tão facilmente. A defesa do Madureira estava bem fechada e não dava nenhuma chance de penetração aos donos da casa. Na outra ponta do campo, Zuluaga e Pini não encontravam o ataque brasileiro: Evaristo chutou uma bola na trave e Silvinho quase marcou o terceiro. Só depois de tudo isso é que Di Stéfano teve sua primeira chance de marcar, conseguindo isso aos 17 minutos. Ensaiava-se uma reação para o time da casa.
Mas o Madureira continuou em cima. Eram 24 minutos quando Genuíno chutou para fazer 3 a 1. E seu próximo gol só não saiu logo depois porque a bola acertou a trave. Depois do "tiro de aviso", Evaristo bateu com mais pontaria e marcou o quarto, aos 30. Lá atrás, o goleiro Irezê garantia tudo sob as traves, mas Agnelo e Darcy faziam bom trabalho na contenção, não lhe dando muita exposição. Ainda antes do intervalo, outra vez Genuíno ficou sozinho e não titubeou para marcar o quinto. Eram incríveis 5 a 1 no marcador, que só não ficou mais extenso no segundo tempo porque a equipe carioca baixou seu ritmo. O Millonarios chegou a marcar mais um gol, novamente com Di Stéfano, mas a acachapante goleada suburbana já era realidade desde o intervalo. Madureira, cinco, Millonarios, dois. Um triunfo de relevo para o futebol brasileiro.
Muitos cariocas só ficaram sabendo do resultado dois dias depois, já que muitos jornais não rodavam às segundas-feiras. O resultado foi recebido com espanto e alegria pela imprensa do Rio, que chamou a vitória de "convincente", além de pagar grandes tributos a Genuíno por sua atuação e considerar ainda mais que justificado o interesse do Flamengo. Do outro lado, a crítica colombiana foi implacável com o Millonarios, questionando se o time era realmente capaz de ir bem na excursão que faria à Europa, dias depois. As palavras ao Madureira foram muito mais gentis: o jornal "El Espectador", de Bogotá, considerou que "o Madureira deixou magnífica impressão" e que "seu triunfo deixa bem colocado o nome do Brasil".
Oferta para comprar os craques brasileiros?
Espantado, o "El Tiempo" chegou a cogitar que um grupo de empresários de Medellín estaria disposto a comprar todo o time do Madureira para disputar o campeonato colombiano. Mas a proposta, se tiver realmente existido, foi rejeitada. O Millonarios pediu revanche e foi atendido: no domingo seguinte, os times voltaram a campo, mas desta vez o Tricolor não conseguiu repetir a boa atuação e foi batido. Vitória dos anfitriões por 3 a 0, com gols de Di Stéfano, Castillo e Rossi, mesmo ainda desfalcados de Pedernera e Báez. A retomada do Millonarios se mostrou válida porque, na semana seguinte, o time partiu para a Espanha, onde derrotou times como o Real Madrid, que passou ali a se interessar por Di Stéfano, que contrataria no ano seguinte.
O Madureira seguiu sua turnê pela Colômbia, perdendo para o Deportes Quindío - que voltava a encontrar - e para o Boca Juniors de Cáli, vice-campeão nacional. Na sequência, foi para o Equador, onde venceu LDU, Aucas e Everest. Mais tarde, passou pelo Peru, batendo o Universitario, e fez mais três jogos na Bolívia: empatou com o Bolívar e perdeu para a seleção de Cochabamba e para o The Strongest. A maior excursão internacional que o Tricolor já tinha feito até então, acabou em maio. Foram oito vitórias, dois empates e sete derrotas. A equipe marcou 38 gols e sofreu outros 31. No segundo semestre, o time jogou o Campeonato Carioca e ficou com um modesto oitavo lugar, apenas uma posição acima do desempenho de 1951.
São poucos os que conhecem (e os que se recordam) da história de uma das vitórias mais importantes de quase 110 anos de história do Madureira, talvez a mais relevante internacionalmente. Para contar, talvez apenas Evaristo esteja vivo. Ele, aliás, seria mais tarde rival e até companheiro de Di Stéfano, encontrando-se com o argentino ao defender o Barcelona e o Real Madrid. Mas, por aquela tarde colombiana de 2 de março de 1952, o velho craque sempre poderá dizer que se impôs a um dos maiores de todos os tempos vestindo uma camisa azul, branca e lilás. Graças ao seu talento e também ao de Genuíno, aquele humilde mineiro de Sete Lagoas que ofuscou o milionário argentino do riquíssimo conjunto de Bogotá.
FICHA DO JOGO
Millonarios 2x5 Madureira
Competição: Amistoso
Data: 02/03/1952
Estádio El Campín (Bogotá - Colômbia)
Millonarios: Cozzi; Zuluaga e Pini; Soria, Rossi e Ramírez; Mourín (Suárez), Mosquera, Castillo, Di Stéfano e Reyes (Aguilera).
Madureira: Irezê; Agnelo e Darcy; Claudionor, Bitum e Walter; Osvaldinho, Evaristo, Genuíno, Silvinho e Tampinha.
Os gols:
Genuíno, 4'/1ºT (0-1)
Silvinho, 5'/1ºT (0-2)
Di Stéfano, 17'/1ºT (1-2)
Genuíno, 24'/1ºT (1-3)
Evaristo, 30'/1ºT (1-4)
Genuíno, 37'/1ºT (1-5)
Di Stéfano, 28'/2ºT (2-5)